By Polemico Dj

O MUNDO FUNK CARIOCA

O FUNK NOS ESTADOS UNIDOS

Uma breve história da música negra americana é imprescindível para entender o que acontece nos bailes cariocas. Não é necessário descobrir onde tudo teve início. África? Plantações de algodão? Igrejas protestantes? Podemos começar nossa história nos anos 30/40, quando grande parte da população negra migrava das fazendas do Sul para os grandes centros urbanos do Norte dos Estados Unidos. O blues, até então uma música rural, se eletrificou, produzindo o rhythm and blues. Essa música, transmitida por famosos programas de rádio, encantou os adolescentes brancos - como veio a acontecer com Elvis Presley -, que passaram a copiar o estilo de tocar, cantar e vestir dos negros. Nasceu o rock (ver Keil, 1966, e Bane, 1982).
Alguns músicos negros continuam tocando rhythm and blues até hoje, mas a maioria deles partiu para novas experiências musicais, distinguindo-se cada vez mais da sonoridade rock. A mais surpreendente dessas experiências foi a união do rhythm and blues, música profana, com o gospel, a música protestante negra, descendente eletrificada dos spirituals. O soul é o filho milionário do casamento desses dois mundos musicais que pareciam estar para sempre separados. [Tanto que muitos bluesmen foram acusados de pacto com o demônio (ver Szwed, 1970)] Os nomes principais para o desenvolvimento do soul, em seus primeiros anos, foram cantores como James Brown, Ray Charles e Sam Cooke, que até usavam gestos e frases típicos dos pastores protestantes em suas apresentações. Durante os anos 60, o soul foi um elemento importante, pelo menos como trilha sonora, para o movimento de direitos civis e para a conscientização dos negros americanos. Tanto que, em 68, James Brown cantava "Say it loud - I'm black and I'm proud" (ver Shaw, 1970).

Em 68, o soul já se havia transformado em um termo vago, sinônimo de black music, e perdia a pureza revolucionária dos primeiros anos da década, passando a ser encarado por alguns músicos negros como mais um rótulo comercial. Foi nessa época que a gíria "funky" (segundo o "Webster Dictionary", "foul-smelling; offensive") deixou de ter um significado pejorativo, quase o de um palavrão, e começou a ser um símbolo de orgulho negro. Tudo pode ser funky: uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou conhecida como funk. Se o soul já agradava aos ouvidos da maioria branca, o funk radicalizava suas propostas iniciais, empregando ritmos mais marcados ("pesados") e arranjos mais agressivos (ver Mc Ewen, 1980).
Como todos os estilos musicais que, apesar de serem produzidos por e para uma minoria étnica, acabam conquistando o sucesso de massa, o funk também sofre um processo de comercialização, tornando-se mais fácil, pronto para o consumo imediato. Em 75, uma banda chamada Earth, Wind and Fire lançou o LP "That's the way of the world", seu maior sucesso, primeiro lugar na parada americana. Esse disco, além de sintetizar um funk extremamente vendável, cuja receita será seguida por inúmeros outros músicos, inclusive alguns dos nomes mais conhecidos da MPB, abre espaço para a explosão "disco", que acabará por tomar conta da black music americana e das pistas de dança de todo o mundo por volta de 77/78 (ver Smucker, 1980).

Enquanto acontecia a febre das discotecas, nas ruas do Bronx, o gueto negro/caribenho localizado na parte norte da cidade de Nova York, fora da ilha de Manhattan [Marshall Berman fala assim do Bronx que viu nascer o hip-hop: "Ao longo dos anos 70, sua indústria principal foi a do incêndio criminoso por dinheiro; por algum tempo pareceu que a própria palavra "Bronx" tornou-se um símbolo cultural da ruína e da morte urbana."(Berman, 1987:27)], já estava sendo arquitetada a próxima reação da "autenticidade" black. No final dos anos 60, um disk-jockey chamado Kool-Herc trouxe da Jamaica para o Bronx a técnica dos famosos "sound systems" de Kingston, organizando festas nas praças do bairro. Herc não se limitava a tocar os discos, mas usava o aparelho de mixagem para construir novas músicas. Alguns jovens admiradores de Kool-Herc desenvolveram as técnicas do mestre. Grandmaster Flash, talvez o mais talentoso dos discípulos do DJ jamaicano, criou o "scratch"', ou seja, a utilização da agulha do toca discos, arranhando o vinil em sentido anti-horário, como instrumento musical. Além disso, Flash entregava um microfone para que os dançarinos pudessem improvisar discursos acompanhando o ritmo da música, uma espécie de repente-eletrônico que ficou conhecido como rap. Os "repentistas" são chamados de rappers ou MCs, isto é, "masters of cerimony".

O rap e o scratch não são elementos isolados. Quando eles aparecem nas festas de rua do Bronx também estão surgindo a dança break, o graffiti nos muros e trens do metrô nova-iorquino e uma forma de se vestir como b-boy, isto é, a adoração e o uso exclusivo das marcas esportivas como Adidas, Nike, Fila. Todas essas manifestações culturais passaram a ser chamadas por um único nome: hip-hop. O rap é a música hip-hop, o break é a dança hip-hop e assim por diante (ver Toop, 1984, e Hager, 1984).
Os scratches dos DJs nova-iorquinos eram feitos em cima de ritmos funky. O hip-hop mixa todos os estilos da black music americana, mas o fundamental é o funk mais pesado reduzido ao mínimo: bateria, scratch e voz. As festas em praça pública ou em edifícios abandonados reuniam em torno de 500 pessoas. Em setembro de 76, num local chamado The Audubon, Grandmaster Flash organizou um baile para três mil pessoas. Essa foi a festa que reuniu o maior número de dançarinos antes que o hip-hop se tornasse conhecido fora de Nova York. É um número bem menor do que os dos bailes soul que se realizavam no Rio na mesma época, alguns freqüentados por 15 mil pessoas. Mesmo assim, Flash se mostrou relutante em realizar o baile:
"Não estou preparado para este lugar. Isto é grande demais. A placa do Corpo de Bombeiros diz 'Três mil pessoas. Nada mais'. Eu dizia para mim mesmo: 'Terei sorte se botar 400 nesta porra, que dizer três mil". (Toop, 1984:95)

Apesar da relutância, a festa estava lotada, e só não se repetiu mais vezes porque a polícia fechou o local devido aos insistentes quebra-quebras, incluindo alguns tiros, que aconteceram durante o baile. Flash comenta: "O Audubon estava fora de cogitações. Não existia nenhum lugar supergrande onde você pudesse tocar" (Toop, 1984-76). "Lugar supergrande": o que ele falaria se visse o Cassino Bangu?
Não existem muitas informações sobre as outras festas do Bronx. Grandmaster Flash faz apenas poucos comentários sobre seu estilo de discotecagem, que poderá ser comparado com o dominante nos bailes cariocas:
"Nós abrimos as portas às 11 horas (...) De 11h às 12h30, eu tocava música hustle para as pessoas calmas que quisessem dançar o hustle (uma dança feita em grupos, com passos sincronizados, popular no início da febre disco) ou dançar decentemente. Mas de 1h até 2h30, é bom agarrar o parceiro, pois estou tocando os balanços mais quentes. Meu assistente vai me dando os balanços mais poderosos. Eu estabeleço a ordem de acordo com as batidas por minuto (...). Bob James era como 102 batidas por minuto e eu ia de 102 bpm para 118 (...). Então eu tocava as músicas lentas, as recordações. Depois que você sua e você está cansado, você gosta disso: "Oh!, ele finalmente desacelerou". (Toop, 1984:73).
O DJ controla conscientemente a intensidade da festa. Até mesmo as batidas por minuto de cada música são levadas em consideração. Flash trabalha com um crescendo de identidade e depois desacelera o ritmo dos dançarinos. Ele diz que isso é o que as pessoas gostam. O DJ está sempre falando "em nome" dos desejos do público.

"Rapper's Delight", o primeiro disco de rap, foi lançado em 1979 pelo grupo Sugarhill Gang. Foi um enorme sucesso de vendagem, o que possibilitou a contratação de Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa, entre outros, por vários selos de discos independentes. Afrika Bambaataa, em 82, com o auxílio do produtor (branco) Arthur Baker, desenvolveu um estilo de gravar hip-hop que abusa dos instrumentos eletrônicos, principalmente as "drum machines". É esse estilo que mais faz sucesso nos bailes cariocas. A percussão, que passa por inúmeros reverberadores, chega a ensurdecer ouvintes desprevenidos. Um arsenal de sintetizadores completa os arranjos, criando climas "futuristas" ou "espaciais". Músicas de grande sucesso: "Planet Rock", "Space in the Place".
Nesse momento, o hip-hop se torna visível nas ruas elegantes de Nova York. Quase todas as esquinas do Greenwich Village eram palco para as acrobacias de vários grupos break que dançavam ao som de rádios enormes, chamados de "Guetto Blasters" ("Dinamitadores" do Gueto). Os breakers logo foram convidados para se apresentar nos clubes mais famosos da cidade. Nessa época também surge o Roxy, um clube com capacidade para quatro mil pessoas, situado na West 18th Street, onde se apresentavam os melhores DJs, rappers, grafiteiros e breakers. Pelo menos em Nova York, o hip-hop já era moda.

Em março de 83, a dupla de rappers Run-DMC [Run-DMC é uma dupla formada por jovens negros de classe média, não mais criados no Bronx, mas em subúrbios com Hollis, Queens. Esse é um dado relevante na história do hip-hop americano, mas não tem grande importância para o estudo do mundo funk carioca.] lança a música "Suckers MCs", outro marco da história do hip-hop. O rap voltava aos seus primeiros tempos, usando apenas o imprescindível das inovações tecnológicas: vocal, scratch e bateria eletrônica, cada vez mais violenta. As letras voltam a falar do cotidiano de um b-boy comum, nada de mensagens estratosféricas. Com essa mesma estratégia musical e incorporando alguns elementos da estética heavy-metal, conseguiu em 86, com o lançamento de seu LP "Raising Hell", transformar o rap em música comercial, chegando a vender mais de 2 milhões de discos. Como está escrito numa reportagem sobre o rap publicada no jornal The New York Times, em 21/9/86:
"A música rap, popular principalmente entre os adolescentes urbanos desde que apareceu no final da década de 70, estourou este ano. O rap costumava ser programado pelas rádios apenas na área de Nova York, onde nasceu, e em Washington, Filadélfia e outras grandes cidades. Mas com o sucesso do último compacto do Run-DMC, "Walk This Way", e do álbum "Raising Hell", o rap está sendo ouvido em todos os lugares."

Pegando uma carona no sucesso do Run-DMC, um grupo chamado Beastie Boys, constituído só por rappers brancos, conseguiu alcançar com seu LP "Licensed to Ill", o primeiro lugar na lista de discos mais vendidos no mercado americano. Parece que a mesma história do rock se repete: adolescentes brancos copiam os ritmos negros e atingem um sucesso comercial inimaginável para seus criadores.
O FUNK NO RIO
Apesar de hoje o circuito funk carioca ser uma manifestação cultural predominantemente suburbana, os primeiros bailes foram realizados na Zona Sul, no Canecão, aos domingos no começo dos anos 70. A festa era organizada pelo discotecário Ademir Lemos, que até então só trabalhava em boates, e pelo animador e locutor de rádio Big Boy, duas figuras consideradas lendárias pelos funkeiros. Big Boy produzia e apresentava um programa diário (menos aos domingos) na Rádio Mundial, estação que sempre tentou atingir um público "jovem" no horário radiofônico mais popular da época. Os Bailes da Pesada, como eram chamadas essas festas domingueiras no Canecão, atraíam cerca de 5 mil dançarinos de todos os bairros cariocas, tanto da Zona Sul quanto da Zona Norte. A programação musical também tendia ao ecletismo: Ademir tocava rock, pop, mas não escondia sua preferência pelo soul de artistas como James Brown, Wilson Pickett e Kool and the Gang. Ademir comenta o final do baile no Canecão.

"As coisas estavam indo muito bem por lá. Os resultados financeiros estavam correspondendo à expectativa. Porém, começou a haver falta de liberdade do pessoal que freqüentava. Os diretores começaram a pichar tudo, pôr restrição em tudo. Mas nós íamos levando até que pintou a idéia do pessoal do Canecão de fazer um show com o Roberto Carlos. Era a oportunidade deles para intelectualizar a casa, e eles não iam perde-la, por isso, fomos convidados pela direção da casa a acabar com o baile."
Intelectualizado ou não, o Canecão passou a ser considerado o palco nobre da MPB. O Baile da Pesada foi transferido para os bairros do subúrbio, cada fim de semana em um bairro diferente. Informantes que freqüentavam esses bailes contam que uma legião fiel de dançarinos ia a todos os lugares, do Ginásio do América ao Cascadura Tênis Clube. Big Boy, que tinha se separado de Ademir mas contratava outras pessoas para cuidar do toca-discos, anunciava seus bailes no programa da Rádio Mundial, cada vez mais influente. Os Bailes da Pesada eram também realizados em outras cidades, chegando até Brasília, em 74.
Alguns dos seguidores dos Bailes da Pesada tomaram a iniciativa de montar suas próprias equipes de som para animar pequenas festas. Não se sabe qual foi a primeira equipe. As opiniões a esse respeito divergem muito, com cada informante querendo dizer que foi o primeiro. As equipes tinham nomes como Revoluções da Mente (inspirado do disco "Revolution of the Mind", de James Brown), Uma Mente Numa Boa, Atabaque, Black Power, Soul Grand Prix.

As explicações para a mudança no ecletismo social dos Bailes da Pesada, resultando na supremacia do soul, não são muito elaboradas. Todos os informantes acabam dizendo que o soul é uma música mais marcada, portanto, melhor para dançar. O discotecário Maks Peu, hoje na Soul Grand Prix, mas no início dos anos 70 um dos fundadores da equipe Revolução da Mente, além de ter sido assíduo freqüentador de Bailes da Pesada, diz que o público que foi aderindo aos bailes era público que dançava, tinha coreografia de dança, então até o Big Boy foi sendo obrigado a botar aquelas músicas que mais marcavam.
Messiê Limá, um nome antigo no comando dos toca-discos das boates cariocas, mas que nos anos 70 aderiu aos bailes fazendo apresentação nos subúrbios, sintetiza a opinião da maioria: "Música significa ritmo. Música sem ritmo para mim não existe. Botou balanço, dançou, colou, o couro come."
Mas os discos de balanço eram artigos extremamente raros. Até a informação sobre os últimos lançamentos era difícil de conseguir, tanto que os discotecários cariocas continuavam a chamar aquela música de soul, quando funk era a palavra usual nos Estados Unidos. Quem conseguia um bom disco rasgava o rótulo para torna-lo um artigo exclusivo de determinada equipe. Essa é uma pratica comum de discotecários de países periféricos aos centros de produção musical. Uma equipe só trocava o nome de uma música de sucesso pela informação do nome de outra ou até mesmo por discos. Existiam poucas lojas que importavam soul: a Bilboard, na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, era a principal delas. A oferta era sempre escassa, principalmente porque o número de equipes foi aumentando. Aeromoças e amigos que viajavam eram acionados para trazer os novos sucessos. Foi nessa época que apareceu aquilo que hoje é conhecido como "transação de discos", a troca ou venda entre equipes de discotecários. Maks Peu conta como "transava" seus discos com Samuel, o Mister Sam, hoje também discotecário da Soul Grand Prix:

"O Samuel dizia 'aí, Maks Peu, eu trouxe o disco, tá aqui'. Aí eu pegava o compacto. 'E, é Jackie Lee, o nome está dizendo, mas como é que é a música, Samuel'? Eu não tinha toca-discos em casa naquela época. Aí ele dizia, "a música é o seguinte, cara, presta atenção na batida para tu não perder o ritmo... pá, ra, ta,ta, tum'. Aí eu começava a dançar. 'Que música, Samuel! Vai arrebentar!' Aí ele dizia, 'e agora, como é que é essa tua?', aí eu: 'Presta atenção para a entrada: pá, rá, pá, pá'. Aí ele: 'Pô, me amarrei, cara! Ta transado, ta transado!', era a confiança que tinha um no outro."
Mesmo com toda a precariedade, os anos 74/75/76 foram momentos de glória para os bailes. Uma equipe como a Soul Grand Prix, que cresceu rapidamente, fazia bailes todos os dias, de segunda a domingo, sempre lotados. Existia uma grande circulação de equipes favoritas aonde quer que elas fossem, facilitando a troca de informações e possibilitando o sucesso de determinadas músicas, danças e roupas em todos os bailes. A divulgação dos locais das próximas festas se dava primeiro apenas com faixas colocadas em ruas de muito movimento, e o anúncio era feito pelos próprios discotecários no final de cada baile. Depois, apareceram os prospectos e a publicidade na Rádio Mundial.
Por volta de 75, a Soul Grand Prix desencadeou uma nova fase na história do funk carioca, que foi apelidada pela imprensa de Black Rio. Essa equipe surgiu fundamentada em outras experiências, além do Baile da Pesada. Dom Filó, engenheiro negro/fundador da Soul Grand Prix, resume a história numa entrevista publicada em 76:
"Bom, o negócio começou em 72, 73, lá no Renascença Clube, onde eu e o grupo cultural - a direção cultural do Renascença - estávamos fazendo um trabalho de cultura para os jovens, mesmo. O lance era o 'Orfeu Negro', de Vinícius, então a gente montou o 'Orfeu'. Aí, tudo bem. Um espetáculo maravilhoso, um sucesso, mas jovem negro nenhum. Ninguém tava ligado nesse troço de cultura. Eu com aquilo compreendi, e entrei numa de fazer som.

Com o som, o pessoal se dividiu e nós começamos a fazer um som lá nos domingos, às 8 e meia. (Jornal de Música, nº 30:4)
Os bailes da Soul Grand Prix passaram a ter uma pretensão didática, "fazendo uma espécie de introdução à cultura negra por fonte que o pessoal já conhece, como a música e os esportes". (Jornal de Música, nº 30:4).
Enquanto o público estava dançando, eram projetados slides com cenas de filmes como Wattstax (semidocumentário de um festival americano de música negra), Shaft (ficção bastante popular no início da década de 70, com atores negros nos papéis principais), além de retratos de músicos e esportistas negros nacionais e internacionais. Os dançarinos que acompanhavam a Soul Grand Prix, e também a equipe Black Power, criaram um estilo de se vestir que mesclava as várias informações visuais que estavam recebendo, incluindo as capas de discos. Foi o período dos cabelos afro, dos sapatos conhecidos como pisantes (solas altas e multicoloridas), das calças de boca estreita, das danças à James Brown, tudo mais ou menos vinculado à expressão "Black is beautiful". Aliás, James Brown era o artista mais tocado nos bailes. Suas músicas, principalmente "Sex Machine", "Soul Power", "Get on the Good Foot", lotavam todas as pistas de dança.
No dia 17/7/76, um sábado, o Caderno B do Jornal do Brasil publicou uma reportagem de quatro páginas, assinada por Lena Frias, intitulada "Black Rio - o orgulho (importado) de ser negro no Brasil." Hoje, as pessoas que viveram o "Black Rio" não guardam boas recordações dessa matéria. Paulão, dono e discotecário da equipe Black Power, afirma:
"Que eu saiba, foi o Jornal do Brasil que inventou o nome Black Rio. Eu nem sei se o meu nome estava ali naquela matéria. Eu nem sei quem é a Lena Frias. Mas o nome da minha equipe era muito forte e, de carona nessa história de Black Rio, eu fui parar no Dops."

Nirto, um dos donos da Grand Prix, também me falou que foi preso, junto com seu primo, Dom Filó, pois a polícia política achava que, por trás das equipes de som existiam grupos clandestinos de esquerda. Tanto Paulão quanto Nirto dizem que as equipes não tinham nada a ver com o movimento negro. Mas isso já estava escrito na matéria de Lena Frias, quando o próprio Nirto declarava:
"Esse negócio é muito melindroso, sabe? Poxa, não existe nada de político na transação. É o pessoal que não vive dentro do soul e por acaso, passou e viu, vamos dizer assim, muitas pessoas negras muito juntas, então se assusta. Se assustam e ficam sem entender o porquê. Então entram numa de movimento político. Mas não é nada disso (...). É curtição, gente querendo se divertir." (Jornal do Brasil, 17/7/76:4).
A matéria do Caderno B foi apenas a primeira reportagem (e a mais completa). Praticamente todas as revistas brasileiras publicaram matérias sobre o mundo funk carioca. Foi o único momento em que os bailes foram discutidos com alguma seriedade e houve várias tentativas de apropriação política e/ou comercial do fenômeno. Homenagens também: Gilberto Gil cantava na música "Refavela": "A 'Refavela' revela o passo com que caminha a geração do black jovem, do Black Rio, da nova dança do salão."
Os debates sobre o Black Rio giravam em torno, principalmente, do tema alienação e/ou colonialismo cultural. Entidades do movimento negro da época, como o IPCN, resolveram apoiar os dançarinos funk contra seus detratores. Carlos Alberto Medeiros, membro da Diretoria do IPCN, publicou artigo no Jornal de Música, onde denunciava a crescente cooptação do samba pela classe média branca e dizia:
"É claro que dançar soul e usar roupas, penteados e cumprimentos próprios não resolve, por si, o problema básico de ninguém. Mas pode proporcionar a necessária emulação – a partir da recriação da identidade negra perdida com a diáspora africana e o subseqüente massacre escravista e racista – para que se unam e, juntos, superem suas dificuldades."

O soul perdia sua característica de pura diversão, curtição, um fim em si (no discurso das equipes), e passava a ser um meio para se atingir um fim – a superação do racismo (no discurso do movimento negro). Tanto que não é surpresa encontrar a seguinte nota publicada na coluna "Afro-Latino-América" do jornal esquerdista Versus, em 78: "Black Rio, Black São Paulo, Black Porto e até Black Uai! Primeiro a descoberta da beleza negra. O entusiasmo de também poder ser black. A vontade de lutar como o negro americano, em busca da liberdade do espírito negro, através do soul. As roupas coloridas, as investidas na imprensa branca junto com a polícia comum... Num segundo momento, uma consciência incipiente começa a surgir. O trabalho, as condições de vida, a igualdade racial começam a receber destaque." (Versus, maio/junho de 1978:42).
A nota chama a atenção para as festas punk que também estavam aparecendo em São Paulo, Porto Alegre e Minas Gerais. Em São Paulo, os principais bailes eram organizados pela equipe Chic Show e mereceram o seguinte comentário de Peter Fry, na introdução de seu livro "Para inglês ver": "Movimento da maior importância no processo de formação da identidade negra no Brasil." (Fry, 1982:15)
Em Salvador, o soul teve um desenvolvimento único, talvez a concretização do sonho "conscientizante" de todos os ideólogos do movimento negro brasileiro. No livro "Carnaval ijexá", Antônio Risério mostra como o baile funk foi o território para a revitalização do afoxé baiano e o nascimento do bloco Ilê Aiyê, dá seu depoimento:

"No Rio de Janeiro, a coisa teve um aspecto mais comercial, aparentemente alienado, porque eles não tinham mesmo uma relação tão intensa com a raiz cultural negra. Aqui, na Bahia, foi muito diferente. A consciência veio como moda, é claro, tinha aquele som, aquelas roupas etc. Depois, com o tempo, a gente viu que esse lance todo da moda não era lá tão importante. Foi aí que pintou o Ilê Aiyê. Eu acho que foi com o Ilê Aiyê que pintou a passagem, que a gente passou de uma coisa para a outra. Por que, com o Ilê, veio a coisa de se manifestar no carnaval já com uma orientação mais real, afro-brasileira." (Risério, 1981:31/2)
Interessante depoimento que mescla internacionalismo com raízes, moda com consciência. O soul é encarado como um rito de "passagem" para algo mais real. O soul, no Brasil, é considerado importante para dar início a um processo onde deixa de ser soul, deixa de ser moda. A diversão só tem cabimento se transformar em conscientização.
Mas a diversão também poderia ser transformada em lucro. Com as reportagens sobre o Black Rio, as gravadoras descobriram um mercado virgem, composto por centenas de milhares de consumidores ávidos por funk. A indústria fonográfica tentou seduzir esse mercado por duas frentes. A mais óbvia era tentar lançar coletâneas produzidas com grandes sucessos de bailes. A segunda tentativa foi frustrada [nomes como Tim Maia e Sandra Sá poderiam ser considerados exceções a essa regra. Mas suas músicas continuam não sendo tocadas nos bailes, que sempre preferem o funk importado.], de criar o soul nacional, produzido por músicos brasileiros, cantando em português.

O primeiro disco de equipe (as equipes ganham uma percentagem de venda) foi o LP "Soul Grand Prix", lançado em dezembro de 76 pela WEA. Depois chegou a vez da Dynamic Soul, da Black Power e, mais adiante, da Furacão 2000 (uma equipe recém-chegada de Petrópolis). O tom adotado no press release escrito pela Polydor, divulgando o primeiro LP da Furacão 2000, mostra o cuidado que essa gravadoras estavam tendo com esses lançamentos.
"Uma divulgação maciça está sendo feita em todo o Grande Rio, Zona Rural, Nova Iguaçu e São João de Meriti para o lançamento do disco, previsto para o próximo dia 12, na sede da escola de samba Império Serrano. Outras equipes estarão presentes, prestigiando a estréia do Furacão 2000 em disco (...). Sendo este o primeiro LP da Phonogram com uma equipe de som do calibre da Furacão 2000, sentimo-nos honrados em iniciar essa entrada no novo mercado, tendo como cartão de visitas uma das equipes mais bem-sucedidas do Rio."
Quanto ao soul nacional, as gravadoras também não economizaram verbas de produção e divulgação. A WEA chegou a financiar os ensaios dos músicos que iriam compor a Banda Black Rio. Outras bandas e artistas caíram nas graças da indústria fonográfica: União Black, Gerson King Combo, Robson Jorge, Rosa Maria, Alma Brasileira, além de nomes mais antigos como Tim Maia, Cassiano e Tony Tornado. A maioria dos discos lançados como soul brasileiro foi fracasso de venda. A sonoridade dos arranjos nacionais, com exceção dos de Tim Maia, não agradou aos dançarinos cariocas. As gravadoras foram, pouco a pouco, deixando o Black Rio de lado, argumentando que, se existe um bom público de funk no Brasil, ele não tem poder aquisitivo suficiente para comprar discos.

A imprensa também se cansou da novidade "Black". O próprio movimento andava em baixa. A Soul Grand Prix trouxe ao Brasil o grupo americano Archie Bell and the Drells, e sofreu um enorme prejuízo, tendo que vender parte de seu equipamento de som para pagar as dívidas. As equipes menores se debatiam com a indefinição do funk, em transição para o reinado disco. Quando os filmes de John Travolta e a febre da discoteca chegaram ao Brasil, a maioria das equipes aderiu ao novo ritmo, para o desespero dos fãs do soul. Esse foi um movimento raro: Zona Sul e Zona Norte estavam dançando as mesmas músicas.
Passada a moda das discotecas, a Zona Sul volta a namorar com o rock, agora chamado de punk, new wave, pós punk etc., até se apaixonar pelo rock brasileiro, em 82; e a Zona Norte continua fiel à black music americana, dançando primeiro o disco-funk e depois aquilo que hoje é conhecido como charme, um funk mais "adulto", melodioso, sem o peso do hip-hop. Os bailes demoraram a ficar lotados novamente.
Uma rádio FM, até então desconhecida, chamada Tropical, começou a divulgar os bailes e o funk em programas especializados; 100% de charme, mas reservaram os últimos minutos para alguns raps. A mudança foi lenta e gradual: no final de 85, os mesmos programas já eram quase 100% hip-hop, apenas os primeiros minutos ficavam com o charme. Os bailes também foram mudando do charme para o hip-hop. Paralelamente a essa transformação musical, apareceram as danças em grupo (as danças no soul eram mais improvisadas, individualizadas) e o novo estilo indumentário: os bermudões, os bonés etc. (ver capítulo IV) Nada soul, nada afro, tudo bem distante das regras de orgulho negro.

Em 86, a imprensa também redescobriu os bailes suburbanos. Apareceram matérias em vários jornais e revistas. Os programas dedicados ao hip-hop, na FM Tropical, chegaram, na segunda metade do ano, a ocupar o primeiro lugar de audiência no Grande Rio. O disco da Soul Grand Prix – que mesmo com o fracasso do show de Archie Bell continuou a lançar discos quase anualmente – vendeu 106 mil cópias, sendo o primeiro LP de equipe a receber Disco de Ouro (100 mil cópias vendidas). Setenta por cento dessa vendagem aconteceram no Rio. O LP da Furacão 2000, atualmente a maior equipe, não chegou a ser Disco de Ouro, mas seu lançamento foi no Maracanãzinho.
Hoje as equipes não circulam tanto. Quase todas elas fazem bailes em locais fixos e sempre aos sábados, domingos e feriados. O público também tende a freqüentar os bailes próximos às suas casas. Por isso, é possível ver algumas variações de dança, música, roupas de maior sucesso entre os bailes. Mas são detalhes insignificantes. O mundo funk carioca continua bastante homogêneo, mesmo levando em conta a existência das festas de charme, minoritárias, que atraem um público diferente.
Uma grande diferença entre os bailes de hoje e os da época "Black Rio" é o desaparecimento quase completo da temática do orgulho negro. Os militantes de várias tendências do movimento negro brasileiro parecem ter esquecido os bailes, não mais considerando-os como espaço propício para a conscientização. Durante uma festa na Rádio Tropical, quando uma pessoa ligada ao movimento negro foi chamada ao microfone, disse apenas que as pessoas estavam ali "para dançar e não para ouvir discursos". Nesse sentido, é possível comparar os bailes funk com as festas organizadas por alguns grupos negros cariocas, como Agbara Dudu. Em agosto de 86, esse grupo organizou uma noite de reggae (ritmo jamaicano muito popular em Salvador mas que, no Rio, é cultuado por uma minoria de jovens) na Tijuca. O ingresso era bem mais caro que o de qualquer baile funk.

A música era ao vivo, incluindo a apresentação do grupo de percussionistas do Agbara Dudu, que toca ritmos muito semelhantes ao dos blocos afro-baianos. O público usava trajes e penteados de influência africana. As danças eram individualizadas. Durante toda a festa, eu recebi vários panfletos de candidatos negros para as eleições que seriam realizadas em novembro de 86, coisa que nunca aconteceu num baile funk.
Algumas vezes, conversando com dançarinos nos bailes, escutei alguém falar que funk é música de preto, rock é música de branco. Mas, em muitas ocasiões, vi grupos de rock serem ovacionados em suas apresentações como atrações extras de bailes que, normalmente, só tocam funk. Já falei do meu susto quando fui chamado de "branco" por uma garota negra que se aproximou do grupo de dançarinos com quem eu conversava. Esse grupo não pode ser considerado típico entre os freqüentadores de baile. Seus componentes fazem parte de uma minoria de "conhecedores" do funk que circulam em todos os bailes, são amigos dos DJs, compram discos e revistas sobre o assunto e podem falar na carreira dos principais artistas do hip-hop. Alguns deles podem formar o Funk Clube, que, segundo sua carta de apresentação, tem dois objetivos. Primeiro, "fortalecer o ritmo funk no Brasil", pois se a música por si só tem toda essa importância cultural na vida das pessoas, sem dúvida nenhuma a música mais dançante do mundo vale mais que ouro". Segundo: vários itens que se resumem na palavra de ordem "união maciça dos negros brasileiros". Os componentes do Funk Clube ficam sempre juntos no baile, dançam break, fazem rap, mas não se diferenciam em estilo de roupa, idade ou ocupação dos outros dançarinos.

Com o sucesso internacional do hip-hop, que se tornou música chique, e também um certo cansaço do rock atual, a Zona Sul voltou a se interessar pela black music. Ainda não é nada parecido com a febre "disco", mas alguns fatos já mostram uma mudança na relação da juventude de classe média branca com o funk, até então considerado "cafona", o que em alguns contextos é sinônimo de suburbano. Bandas de rock cariocas e paulistas já estão compondo músicas que utilizam o hip-hop como fonte de inspiração. Mas o principal desses fatos foi a realização de uma série de noites hip-hop (intituladas Hip-hop I, Hip-hop II etc.) no Crepúsculo de Cubatão, boate situada no Centro de Copacabana. Dessas festas participaram a equipe Music Rio, de Niterói, o DJ Marlboro, grupos de rap e break. A Hip-hop I foi notícia em todos os jornais cariocas. Mesmo com toda a propaganda, só 200 pessoas participaram da festa, que foi totalmente diferente – danças, roupas etc – dos bailes suburbanos. Até algum tempo atrás, o Crepúsculo de Cubatão era um local dedicado exclusivamente ao rock pós-punk, sendo freqüentado por jovens que a imprensa apelidou de "darks" (roupas sempre negras, pele muito branca, maquiagens sombrias, ar entediado). Hoje, ex-darks se fantasiam de hip-hoppers.
Uma festa chamada hip-hop já é algo inédito no Rio. Apesar de os bailes suburbanos serem dedicados a esse tipo de música, são poucas as pessoas que usam a palavra hip-hop. Funk, funk pesado, balanço são os nomes mais populares. Também não se pode dizer que todo o mundo funk do Rio faça parte de uma cultura hip-hop. As roupas dos dançarinos cariocas não têm nada a ver com o estilo b-boy. As danças também são muito diferentes. O break chegou a ser divulgado pelos meios de comunicação de massa brasileiros, incluindo concursos de break em programas de televisão, como os do Chacrinha ou do Sílvio Santos, mas nunca se tornou popular nos bailes.

Os grupos, tanto de break quanto de rap, que se apresentaram no Crepúsculo de Cubatão fazem parte de uma minoria "bem-informada", em dia com o que acontece em Nova York, e seus componentes, alguns moradores da Zona Sul, não são muito "enturmados" com a "rapaziada" que freqüenta normalmente os bailes.
Até mesmo os scratches não são muito difundidos nos bailes cariocas. São poucos os DJs que utilizam essa técnica hip-hop de discotecagem. A maioria usa somente os scratches que já estão gravados em discos. A utilização de teclados e baterias eletrônicas ainda é mais rara. Nos bailes dos subúrbios cariocas, o DJ não é o astro da festa, como acontece nas Hip-hop Rio da Crepúsculo de Cubatão ou nos clubes noturnos de Nova York. Mas parece que essa situação também começa a mudar. O DJ Marlboro foi convidado para gravar uma montagem de trechos das músicas de maior sucesso em baile tocados com bateria eletrônica, sintetizador e scratch, e um rap que fala da situação do funk no Brasil [A letra vai logo no assunto: "O funk no Brasil é muito forte /existe há muitos anos mas não teve sorte /porque quem manda aqui tem que dar um tempo/ parar com o preconceito e ficar atento/ àquilo que acontece mesmo contra o vento/ tendo pela massa o reconhecimento." Quem manda aqui, segundo Marlboro, é quem dita as modas, a Rede Globo, o rádio e a televisão, que não divulgam o funk.], no novo LP da Soul Grand Prix. Tanto a montagem quanto o rap já fazem sucesso em vários bailes. Vários outros DJs cariocas já pensam em seguir o caminho aberto por Marlboro.

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